Há como ‘salvar’ o atual sistema diante de negócios cada vez menos corporificados?
O tema da reforma Tributária tem suscitado diversos debates no mundo jurídico, sendo objeto de análise por estudiosos de alto escalão do Direito Tributário.
Atualmente, duas das principais propostas de reforma tributária em trâmite são: (i) a PEC 45, em tramitação perante a Câmara dos Deputados; (ii) a PEC 110, em tramitação perante o Senado Federal.
Em que pese possuírem características específicas que as diferenciam, de um modo geral ambas as propostas convergem no objetivo principal: reestruturar o sistema tributário nacional mediante a supressão de diversos tributos, para substituição por um único imposto (incidente sobre o consumo – espécie de IVA), de modo que as receitas provenientes da sua arrecadação seriam repartidas entre os diferentes entes federados.
Apesar da relevância de uma reforma tributária especialmente diante da mudança de contexto atual, em que conflitos de competência dos mais diversos têm surgido diante das mudanças vividas no ambiente de negócios (p. ex, em função da economia digital), as aludidas propostas de reforma tributária têm sido objeto de diversas críticas, notadamente em função da alegada violação ao pacto federativo, uma vez que os Estados e Municípios perderiam a competência tributária dos impostos sobre o consumo – o ICMS e o ISS.
Diante disso, alguns especialistas têm proposto em debates sobre o tema a realização de determinadas mini reformas1 ou ainda a reinterpretação constitucional como um meio para evitar discussões atinentes ao pacto federativo. Isto é, na visão desses especialistas, a Constituição é completa e já teria previsto todas as formas de evitar conflitos de competência, bastando algumas mini reformas no sistema infraconstitucional ou mesmo a reinterpretação dos signos presuntivos de riqueza previstos na CF/88 para que os aludidos conflitos não mais surgissem e, ainda, para que os fatos hoje não alcançados pela tributação pudessem ser devidamente tributados.
Isso ainda evitaria insegurança jurídica. É que, como o Poder Judiciário já tem pacificado diversos temas relacionados ao sistema atual, uma reforma tributária que alterasse os signos seria passível de novos questionamentos.
A reinterpretação constitucional ainda poderia andar em conjunto com a possibilidade de mutação dos conceitos constitucionais, que nada mais é do que a alteração de significado das normas constitucionais mediante a reinterpretação dos conceitos diante de novos contextos extranormativos, alteração esta que não poderia ultrapassar os limites mínimos postos pelos signos presuntivos de capacidade contributiva previstos na Constituição.2
Além disso, caso se opte pela linha dos tipos, ao invés de conceitos, na discriminação de competências tributárias, poderia se argumentar que novas características foram incorporadas aos tipos previstos na Constituição em função do novo contexto que se coloca e, dessa forma, uma evolução nas características dos impostos seria necessária.
De uma forma ou de outra, parece que tais pontos3 não são capazes de adequar o sistema atualmente vigente à necessária simplificação tributária e adequação às atuais realidades (e as que estão por vir), em que cada vez mais ativos intangíveis são utilizados em relações econômicas em detrimento de ativos tangíveis.
Isso porque o constituinte dispunha de uma realidade histórica e econômica distinta, em que, para a discriminação de competências, não houve a criação novos signos presuntivos de riqueza distintos da Constituição anterior4, mas apenas a redistribuição das materialidades já existentes entre os entes federados – a exemplo do antigo ICM, cuja pretensão era alargar a competência dos Estados para tributação dos serviços ali incluídos, criando o “super ICM”, ou melhor, o já conhecido “ICMS”.
Por conta disso, cabe observar que as materialidades do IPI, ICMS e ISS levam em consideração operações “corporificadas” da economia tradicional – por exemplo, a saída de um produto do estabelecimento prestador, a circulação jurídica de mercadorias e a obrigação de fazer uma “utilidade”, mediante esforço humano em operação dotada de caráter econômico – que em diversas oportunidades não mais são capazes de se adequar às realidades vinculadas a diversos negócios hoje realizados.
Certamente, mercadoria hoje não é mais a “mercadoria” que o constituinte de 1988 dispunha no momento de discriminação de competências tributárias. O que se quer dizer é que o Direito Tributário, que capta realidades econômicas para fazer incidir a correspondente norma fiscal, não é mais adequado a uma realidade cada vez menos corporificada (sem operações de transferência de mercadorias/produtos), uma vez que as relações têm se inclinado para a prestação de serviços, como o mundo de impressão 3D, Internet das Coisas, streaming etc, que permitem interpretação pela incidência de uma ou outra norma fiscal.
Ou seja: conflitos de competência verticais (Estados x Municípios) ou conflitos de competência horizontais (Municípios x Municípios) naturalmente surgem diante disso.
Dois exemplos: (1) Impressão 3D: a Impressão 3D permite que o detentor da impressora imprima o bem que se pretende a partir da compra ou da confecção de um projeto. Este bem pode ser impresso para (i) venda a terceiros ou (ii) uso próprio, sendo que o projeto correspondente pode ser adquirido via licença de uso, aquisição dos direitos vinculados ao respectivo bem ou elaboração dos bens a partir de um site especializado. Além de discussões relacionadas ao IPI, em que já houve manifestação da Receita Federal sobre o tema, observe-se que há situações em que ocorrerá, por exemplo, ao invés da compra de um bem em uma loja física, a aquisição de um projeto desse mesmo bem na loja virtual (site) de uma empresa que no passado vendia bens corporificados. Que tributo incidirá nesta transação? Como enquadrar as atuais normas em uma venda de um projeto (que pode se dar não mediante a aquisição do projeto em si, mas uma licença de uso – temporária ou definitiva) de uma mercadoria (ou produto)? Sem dúvidas há argumentos para tributação pelo ICMS ou ISS e discussões sobre a violação ao princípio da igualdade e afronta à concorrência; (2) Aplicativos de viagem: não raras vezes os motoristas de aplicativo (UBER, por exemplo) iniciam as corridas em um município (São Paulo) e terminam as viagens em outros municípios (São Caetano, Santo André). Qual o município competente para exigência do ISS? Onde se localiza o estabelecimento prestador?
Essas são perguntas que o sistema atual não consegue responder.
Por isso, dissemos linhas acima que a reinterpretação do modelo posto na Constituição, ou mesmo reformas pontuais, não seriam soluções ideais para captar as novas realidades diante do contexto de evolução tecnológica e que deve se alterar ainda mais nos próximos anos – não se descarta a relevância dessas reformas infraconstitucionais, especialmente para simplificação de obrigações acessórias, bem como para reduzir discussões desnecessárias e assegurar um ambiente menos instável juridicamente.
Ademais, as propostas de reforma tributária também pretendem solucionar anomalias derivadas do atual sistema, que parecem ser incontornáveis e bastante prejudiciais aos contribuintes e à Federação, como (i) a Guerra Fiscal atrelada à ineficiência na alocação de recursos econômicos decorrentes do sistema do ICMS; (ii) o Contencioso Desnecessário em decorrência dos conflitos de competência (horizontais ou verticais); e (iii) a tão buscada Simplificação Tributária.5
É certo que as propostas de reforma tributária possuem diversos pontos de aprimoramento, como o Comitê Gestor e a não-cumulatividade no caso da PEC/45, mas a sua relevância é inegável em decorrência de tudo que se demonstrou.
Em conclusão, tendo em vista que mini reformas ou a reinterpretação da Constituição não são capazes de adequar o sistema tributário posto às novas realidades, é necessária uma Reforma Tributária que, além de ser capaz de captar as riquezas decorrentes da economia digital (novo ambiente de negócios), trará diversos benefícios aos Contribuintes e à Federação, contribuindo para a evolução do nosso País.
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