Críticas à transação tributária na Medida Provisória nº 899/2019
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A possibilidade de a transação ter caráter substitutivo ao lançamento viola o CTN

É louvável a iniciativa do Governo Federal de regulamentar finalmente o artigo 171 do Código Tributário Nacional, que prevê a extinção do crédito tributário pela transação entre fisco e contribuinte. A Medida Provisória no 899, de 2019, é uma iniciativa que busca “tirar o Estado do cangote do contribuinte”, como afirmou o Procurador-Geral da Fazenda Nacional José Levi do Amaral. Tentativa semelhante ocorreu em 2009, com o envio pelo Poder Executivo do Projeto de Lei no 5082 à Câmara dos Deputados.

Ao estudar aspectos da ineficiência da execução fiscal no Brasil, tivemos a oportunidade de apontar entusiasmo com a regulamentação da transação tributária como maneira de ampliar a arrecadação de créditos difíceis, bem como reduzir a litigiosidade fiscal no Poder Judiciário e a intervenção forçada pela execução nas atividades empresariais do contribuinte. Exemplos positivos dessa proposta são os installment agreements e Offer-in-Compromise praticados pelo Internal Revenue Service norte-americano.

De outro lado, a chamada consensualidade administrativa tem se mostrado como um reforço à legalidade e à segurança jurídica. Basta lembrar que o artigo 26 da Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro, a partir da Lei no 13.655/2017, passou a permitir a celebração de acordos entre a Administração e o particular para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público. Isso ocorre na esteira de outras experiências pontuais de consensualidade, como os termos de ajustamento de conduta das agências reguladoras e acordos de leniência do CADE e CGU.

Contudo, não se podem transportar institutos alienígenas para o Direito Tributário brasileiro sem uma análise criteriosa da sua compatibilidade com o Sistema Tributário Nacional, o qual é caracterizado pela sua rigidez em face a modelos comparados. Da mesma maneira, também no Direito Administrativo há limites para a celebração de acordos entre Estado e particular.

A Medida Provisória prevê dois modelos de acordo. O primeiro, regulamentado pelos artigos 3º a 10, consiste em uma transação para a cobrança da Dívida Ativa. Essencialmente, as medidas possíveis são a concessão de descontos, o parcelamento, a moratória e o oferecimento de garantias. Portanto, permite-se modificar a maneira pela qual será satisfeita a pretensão fiscal da União.

Já a transação por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, prevista nos artigos 11 a 18, consiste em propor aos sujeitos passivos transação resolutiva de litígios tributários ou aduaneiros. O texto é bastante claro ao afirmar que a transação tomará por base uma controvérsia jurídica e que o sujeito passivo deverá renunciar a todas as alegações de direito presentes e futuras sobre a matéria. A ideia, segundo a própria exposição de motivos da medida, é reduzir o contencioso tributário.

As duas modalidades de transação têm, a nosso ver, perfeita identidade com os conceitos de acordos administrativos integrativos e substitutivos. Os acordos integrativos são aqueles que, sem substituir o ato administrativo final, o precedem ou sucedem para modelá-lo, ampliando em especial sua eficácia[1].

Já os acordos substitutivos, como a própria nomenclatura aponta, substituem o ato final da Administração por um ato consensual[2]. Como se vê, nos acordos integrativos, o ato terminativo do processo ainda é um ato unilateral da Administração, apenas com eficácia modulada por um acordo endoprocessual. Já no caso dos acordos substitutivos, o próprio ato parte de um consenso entre o particular e o Estado, substituindo o ato unilateral que poderia ser praticado.

A nosso ver, a ideia de acordo substitutivo não é compatível com atos administrativos vinculados. Isso porque o ato administrativo vinculado restringe não apenas os fins, mas a própria conduta da administração (validação pela conduta). Ou há motivo para prática de um ato específico, ou não o há, sem espaço para maior deliberação.

Os atos administrativos discricionários, que vinculam os fins do gestor (validação pelo resultado), mas não sua conduta por si, podem ser objeto de substituição, pois abrem espaço para considerações de conveniência e oportunidade.

Partindo dessas premissas, vê-se que a transação para a cobrança da Dívida Ativa consiste em um acordo administrativo integrativo, pois as condições de pagamento, como meios de satisfação do crédito tributário, integram a eficácia de um ato administrativo anterior: o lançamento. O lançamento, pela dicção do artigo 142 do Código Tributário Nacional, é um ato administrativo vinculado e privativo da autoridade fiscal. Vinculado que é, portanto, pode ter sua eficácia modelada pelo acordo integrativo sem ter sua substância e validade malferidas.

O mesmo não ocorre com a transação por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica. O contencioso fiscal integra a noção de lançamento como procedimento que verifica a ocorrência do fato gerador e suas circunstâncias e, conforme o artigo 142 do CTN, tem natureza vinculada e privativa da autoridade fiscal. Com efeito, firmar uma transação no bojo do contencioso fiscal implica na verdade em substituir o lançamento tributário por um acordo entre as partes, o que não é possível em virtude da própria noção de vinculação: ou é devido o tributo nos termos da lei ou não o é.

Poder-se-ia dizer que a transação no contencioso fiscal não abrangeria matéria afeta à legalidade, mas apenas fatos adstritos ao lançamento, os quais podem ser objeto de confissão. Mas a própria repetição constante pela MP da ideia de “controvérsia jurídica” e da necessidade de abrir mão de “alegações de direito” milita contra essa ideia. Ademais, ao ser efetuada “por adesão”, essa modalidade de transação com certeza desconsiderará aspectos muito particulares de cada caso.

Entendemos, portanto, que a transação no contencioso fiscal implica em verdadeiro acordo substitutivo do lançamento, a malferir o artigo 142 do CTN. A norma provisória, portanto, é inconstitucional. A despeito disso, como já colocado, o acordo integrativo para cobrança da Dívida Ativa, além de compatível com o CTN, tem o potencial de, a exemplo do Direito Comparado, promover maior arrecadação e eficiência no processo de recuperação da Dívida Ativa, bem como de fazê-lo sem inviabilizar a atividade cotidiana do contribuinte.


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