Transporte e sociedade
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09 de Março de 2015 – 05h19 horas / Giuseppe Lumare Júnior

Ao cidadão comum passa despercebida a íntima relação da sociedade e das atividades de transporte, mas ela é tão estreita que se pode afirmar com segurança que qualquer sociedade e seus sistemas de transporte são mutuamente dependentes. O abastecimento dos núcleos urbanos depende de um ciclo em que a produção e as cadeias de fornecimento envolvidas se sustentam e se retroalimentam para evitar a solução de continuidade das atividades mais básicas a uma sociedade: alimentação, transportes e trabalho.

Isso ficou evidente com a recente paralisação dos carreteiros que instaurou, em pouco tempo, uma séria crise de abastecimento. Em detrimento dos bloqueios forçados, isso mostrou o que a falta de transporte pode provocar a uma sociedade. Como ocorreu com a falta de água, que até então parecia ser um bem infinito e inesgotável – ao menos para o brasileiro que foi acostumado desde criança pelo ufanismo dos livros didáticos do passado –, dado que nosso país foi abençoado e agraciado com as maiores reservas de água doce do planeta, a falta de água trouxe a todos uma certeza: a falta de um bem essencial leva uma civilização a refletir sobre suas limitações e as possibilidades reais de sobreviver frente a dificuldades imprevistas. Esse choque de realidade nos mostrou que, no Brasil, há muita água onde há pouca gente e vice-versa e que, sem conservação das reservas, racionalização da produção e consciência no consumo, estamos fadado a viver um racionamento com efeitos desastrosos à sociedade.

Com o transporte, o choque de realidade parece que não se instaurou na mesma velocidade e com o mesmo trauma, porém, as coisas não são muito diferentes. Se vivemos momentos econômicos difíceis, é o transporte que primeiro se ressente disso. Como se pensava sobre a água, que seria um recurso infinito, ainda a sociedade pensa o mesmo do transporte, que seria uma atividade altamente rentável já que, na visão de senso comum, como tudo se transporta, a demanda não é um problema e a prosperidade é a tônica no transporte. Ledo engano. Transporte e sociedade sofrem do mesmo mal. Ambos dependem um do outro e, como nos sistemas ecológicos, certos desequilíbrios condenam uma espécie à extinção. E não adianta dizer que outro transportador toma o lugar daquele que desapareceu. A morte de um transportador é a morte de uma cultura única que jamais será reconstituída na íntegra e os serviços, cujo desenho era singular, não serão novamente reproduzidos, assim como não é possível reviver espécies extintas.

As pesquisas e estatísticas da NTC – Associação Nacional de Transporte & Logística – registram que nas últimas décadas a mortandade no transporte, em geral, e nas especialidades de carga fracionada, em particular, foram espantosas: das 20 maiores transportadoras que lideravam o ranking na década de 70 apenas uma sobreviveu. Isso exige reflexão e cuidados não só dos próprios transportadores, mas sobretudo dos demandantes diretos desses serviços e da sociedade em geral, dada a influência sistêmica que a falta de transporte pode acarretar às atividades econômicas e, por conseguinte, ao nível de emprego.

Assim como a água, o transporte é um bem escasso, que deve merecer incentivo, não em sentido paternalista, já que o empreendedor de transporte é sobretudo um forte, mas sim estímulos decorrentes da noção de interdependência difusa que os sistemas de transporte têm com todas as atividades humanas. Em sociedades a meio caminho da prosperidade, como é o caso brasileiro, em que a infraestrutura ainda é precária e a sociedade de consumo ainda engatinha, os transportes são cruciais e uma “condição de possibilidade” do pleno exercício do empreendedorismo social. Não se pode tratar o transporte como um recurso inesgotável. Os carreteiros, por exemplo, foram à lona e reagiram como podiam. Mas os empresários de transporte, movidos pelo otimismo e a fé que os marca, seguem cumprindo seu mister mesmo à beira do precipício e nos estertores de suas forças. Heroísmo? Insanidade? Resignação? Missão? Não! Esperança e confiança na pujança do Brasil!

Por isso, cada cliente deve refletir sobre seu transportador como parceiro. O transportador é aquele trabalhador que depende do sucesso de terceiros e torce por eles, age como preposto e faz a diferença na ponta, pois sabe que seu sucesso está atrelado ao de seu cliente. É preciso criar elos fortes, acabar com o oportunismo e não matar a galinha dos ovos de ouro. Vê-se, todavia, um oportunismo sem igual de muitos que não se importam com o próprio futuro. A arbitrariedade tem sido a tônica de grandes embarcadores, cujas preocupações não consideram as consequências de seu peso sistêmico na atividade de transporte. Assim, exaurem suas fontes de transporte, matam seus parceiros e seguem resolutos, se sentindo competentes porque reduziram seus fretes, mesmo quando isso não era necessário. Depois, expõem as cabeças empalhadas de suas vítimas como troféus de suas vitórias vis.

É chegada a hora de resgatar as verdadeiras parcerias em que as partes se acomodam com a verdade e não usam as alternativas de preço vil como base para aplicar sua força. Os transportes são essenciais em uma sociedade e isso não é uma defesa corporativa: é sim uma verdade incontestável.


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