Sem ‘decolar’, contrato intermitente divide opiniões entre especialistas
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Modalidade criada no âmbito da reforma trabalhista de 2017, os contratos intermitentes vêm avançado de modo comedido e se concentram em setores como serviços, comércio e construção civil. Especialistas se dividem sobre seus ganhos e efeitos. Para alguns, o tipo de contrato ajuda na formalização de empregados ilegais. Outros, contudo, veem precarização das relações de trabalho e perda de direitos trabalhistas.

O emprego formal na modalidade intermitente remunera o trabalhador apenas pelas horas efetivamente trabalhadas e é de caráter não contínuo, ou seja, alterna períodos de atividade remunerada e inatividade não remunerada, sem que isso seja considerado rompimento do vínculo empregatício.

Até novembro de 2023, os contratos intermitentes representavam 5% da média de novas vagas geradas mensalmente e cerca de 0,6% do estoque, segundo dados do Novo Cadastro Geral de Empregos e Desempregados (Caged). Dados reunidos pela LCA Consultores mostram que o saldo acumulado em 12 meses de contratos intermitentes chegava a 91,9 mil, enquanto o estoque de vagas desse tipo era de 467,8 mil.

Para Bruno Imaizumi, economista da LCA, a modalidade é uma tentativa de trazer para a formalidade trabalhadores que não trabalham com registro em carteira.

“São vários tipos de atividade que antes existiam dessa forma, mas de maneira informal. O empregado trabalhava como intermitente de maneira informal, não recebia benefícios previdenciários, férias proporcionais, 13º salário ou hora extras”, diz. “Conseguiu-se, portanto, formalizar empregados que não teriam muitas chances de serem contratados em regime de carteira assinada. ”

O crescimento dos intermitentes, contudo, ainda é pequeno em relação ao total de contratos formais, afirma Lucas Assis, economista da Tendências Consultoria.

“Contratação intermitente não teve impacto significativo na geração de postos de trabalho”

— Lucas Assis

“Desde a criação do contrato intermitente, o saldo de suas movimentações permaneceu positivo, aliviando parcialmente impactos negativos em outras modalidades contratuais durante a pandemia. Ainda assim, a modalidade apresenta reduzida participação no estoque de emprego total, sendo inferior a 1%”, afirma. “Portanto, a contratação intermitente não teve um impacto significativo na geração de novos postos de trabalho no país.”

O estudo “Trabalhadores em contrato intermitente no Brasil: evolução, cenários e perfil dos contratados pós-reforma trabalhista de 2017”, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em julho de 2023, mostra que o perfil dos trabalhadores contratados como intermitentes está mais relacionado ao de indivíduos com maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, incluindo aqueles com faixa etária menor, homens não brancos e com escolaridade até o ensino médio.

Em média, 71% dos trabalhadores intermitentes com vínculo ativo têm até 39 anos. Homens respondem por 62,8% dos vínculos ativos, e trabalhadores de cor não branca são 58,8% do total. Assim como no universo de contratos formais, no de intermitentes predominam os trabalhadores com ensino médio completo (70%). A região Sudeste é que apresenta maior concentração dos vínculos intermitentes (55,7%), com destaque para o Estado de São Paulo.

Os subsetores de serviços e comércio respondem pela maior parte do emprego intermitente (47,4% e 21,6%, respectivamente), seguido por construção civil (15,6%) e indústria de transformação (13,9%), segundo o estudo.

O contrato intermitente é inspirado no modelo inglês de contrato “zero hora” (zero hour contract) e foi possível no Brasil graças ao contexto pós-impeachment da então presidente Dilma Rousseff, que permitiu uma reforma “extremamente liberalizante”, no sentido de flexibilização das relações de trabalho, diz Sandro Pereira da Silva, pesquisador do Ipea e coautor do estudo.

“A modalidade leva ao que chamamos de tripla situação de vulnerabilidade, quando o trabalhador passa a estar sob três tipos de incerteza: quanto à jornada de trabalho que vai exercer, ao rendimento que terá no fim do mês, e em relação à seguridade social”, diz Pereira.

“Na formulação do contrato, o empregador não tem de se comprometer com nada do empregado. Não tem compromisso de horários de contrato ou remuneração mínima e garante os direitos que estão na Constituição de forma flexibilizada, por isso vem sendo objeto de muitas contestações judiciais.”

No estudo, Pereira e Alanna Santos de Oliveira, pesquisadora da Universidade Federal de Uberlândia, alertam que um dos maiores problemas do contrato intermitente “é a falta de um piso remuneratório pré-estabelecido”.

Até 2021, eles observam, metade dos 243 mil contratos intermitentes ativos à época pagavam, em média, menos que um salário-mínimo. Isso causa insegurança aos intermitentes em relação à cobertura pelo sistema público de seguridade social, já que a contribuição baseada no que ele recebe pode não alcançar o mínimo mensal exigido pelo INSS.

“Para alguns benefícios, como a cobertura previdenciária (contagem de tempo para aposentadoria, salário-maternidade, auxílio-doença), o empregado teria a possibilidade de fazer um aporte complementar, de seu próprio bolso, da diferença de valores, mas para outros benefícios (seguro-desemprego, abono salarial), não há essa possibilidade”, diz o estudo.

O texto lembra ainda que muitos autores questionam o modelo de contrato intermitente perante a noção de trabalho decente prevista pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela agenda global dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

“A modalidade de contrato intermitente foi vendida como solução para enfrentar o desemprego de curto prazo e também para aumentar a formalização, uma vez que muitos assalariados informais poderiam ser contratados por essa via”, afirma.

“Mas ocorre o contrário. Em vez de propiciar a possibilidade de formalização dos vínculos informais no mercado de trabalho brasileiro, esse tipo de vínculo é um canal de potencial precarização de contratos formais.”

Em “A qualificação do trabalhador intermitente e sua evolução no mercado de trabalho”, outro estudo do Ipea de 2023, o pesquisador Luís Felipe Batista de Oliveira retoma dados do Ministério do Trabalho e Previdência de 2021 que mostram que a remuneração mensal média do trabalhador intermitente era de R$ 1.043,53, cerca de 4% maior que o salário mínimo da época.

O problema é que não há jornada contratual fixa para contratos intermitentes e a demanda de trabalho é irregular. Boletim do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de maio de 2023 mostra que 20% dos vínculos intermitentes firmados em 2021 não geraram trabalho ou renda e que a remuneração mensal média dessa categoria foi de R$ 888, equivalente a 81% do valor do salário mínimo naquele ano.

Além disso, 44% receberam menos que um salário mínimo e apenas 17% dos vínculos intermitentes tiveram remunerações que equivalem a dois ou mais salários mínimos.

“O que parecia ser uma oportunidade para aquecer os setores de geração de emprego e renda tem se mostrado um aliado à precarização do mercado de trabalho”, afirma Gustavo Monteiro, economista do Dieese.

De acordo com o economista, dentre os principais motivos para esse tipo de contrato não ter crescido mais até agora, o da insegurança jurídica vem em primeiro lugar.

“Houve debate jurídico sobre sua constitucionalidade, aplicação, como fazer cálculos relativos a férias e 13º proporcionais, criando dificuldades para as empresas. As empresas não sabem bem como contratar ou como isso funcionará”, diz Monteiro.

À época da criação da modalidade, defensores argumentavam que o trabalhador ficaria livre para ter contratos intermitentes com diversas empresas, o que lhe conferia a possibilidade de ampliar a renda, diz Pereira.

“Mas, na prática, isso é muito difícil. O trabalhador nunca sabe quando será chamado pela empresa, que precisa convocá-lo com apenas três dias de antecedência, quanto tempo vai trabalhar, quanto receberá e se conseguiria conciliar o horário de trabalho com outros afazeres”, afirma Pereira.

“O que acaba ocorrendo é as pessoas possuírem contrato intermitente com, no máximo, duas empresas. A ideia de que as pessoas teriam vários vínculos e poderiam escolher o melhor é uma falácia.”

No curto prazo, a expectativa é que o contrato intermitente de trabalho siga em expansão, mas de maneira limitada pela perda de tração da economia.

“A junção de desaceleração em curso da economia global com os efeitos defasados da política monetária doméstica, menor impulso fiscal e ausência de crescimento expressivo do setor agropecuário explica a expectativa de avanço moderado dessa modalidade contratual”, prevê Assis.

 


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