Reforma tributária pode ser divisor de águas para o Brasil, diz Gopinath, do FMI
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A reforma tributária dos impostos indiretos pode ser um divisor de águas para o Brasil, avalia Gita Gopinath, primeira-vice-diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI). “Ela simplificaria o sistema tributário e tem a capacidade de aumentar o crescimento potencial”, disse Gopinath. “Se for aprovada, será um conquista significativa.” Em entrevista ao Valor, a número 2 do FMI mostrou ainda uma visão positiva sobre o arcabouço fiscal proposto pelo governo, por considerá-lo útil para a sustentabilidade da dívida e por ajudar num ambiente de inflação alta. A economista, porém, entende que há espaço para um esforço mais ambicioso de ajuste das contas públicas além de 2026, o que contribuiria para o endividamento público entrar numa trajetória mais firme de queda.

Em discussão na Câmara dos Deputados, a reforma dos tributos indiretos envolve a unificação de três impostos federais (IPI, PIS e Cofins), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS), que poderá ser feita eventualmente em duas fases – primeiro com a junção dos federais e depois com a dos regionais. Para Gopinath, embora essa reforma seja em princípio desenhada para ser neutra do ponto de vista das receitas, ela pode ajudar a levantar recursos adicionais, dado o impacto positivo esperado sobre o crescimento potencial.

“Os mercados emergentes estão numa posição melhor para enfrentar choques”

Ao falar da economia global, Gopinath traçou um quadro marcado por pressões inflacionárias difíceis de serem dobradas. Para enfrentá-las, os bancos centrais precisam manter-se firmes e seguir com uma política monetária apertada, afirmou ela, que fez a palestra de abertura da Primeira Conferência Anual do Banco Central (BC), realizada na quarta-feir a, em Brasília. Na capital, Gopinath também se reuniu com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Gopinath falou ao Valor depois de seu discurso no BC, destacando também os riscos para a atividade econômica global. O cenário base do FMI aponta para um “caminho estreito” em que a inflação volta aos níveis anteriores à pandemia sem uma recessão profunda em muitos países, incluindo os EUA. “Há um caminho estreito para evitar uma recessão neste ano. Mas, dito isso, há bastante incerteza em torno da nossa projeção e as possibilidades são mais para o lado negativo do que para o lado positivo”, advertiu Gopinath.

A economista ressaltou ainda que o FMI trabalha com um crescimento mundial mais baixo. “Se você olhar para as nossas estimativa mais recentes para o crescimento de médio prazo da economia global, ele é de 3%. Se você fizesse a mesma pergunta em 2011, era 4,6%”, afirmou ela, lembrando que a taxa de expansão de médio da prazo da China deve desacelerar, com o país enfrentando questões como o envelhecimento da população e uma produtividade mais fraca.

“Há um caminho estreito para muitos países evitarem uma recessão mais profunda”

Nascida na Índia e com cidadania indiana e americana, Gopinath foi economista-chefe do FMI de 2019 a 2022, assumindo o posto atual em janeiro do ano passado. Foi professora da Universidade Harvard e, antes disso, da Universidade de Chicago. Tem doutorado pela Universidade Princeton, concluído em 2001. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Depois de um longo período de inflação baixa, a economia global enfrentar pressões inflacionárias resistentes nos últimos anos. Quão preocupantes são essas pressões e como os bancos centrais devem lidar com elas?

Gita Gopinath: A inflação está caindo em muitos países, especialmente os índices “cheios”. Os núcleos de inflação, porém, parecem cair muito mais gradualmente e se mostram mais rígidos. Aqui é que está a preocupação. Nós saímos de um período de juros reais [descontada a inflação] muito baixos, e agora estamos num período em que os juros reais subiram significativamente, para serem capazes de reduzir a inflação. Eu de fato acredito que nós começamos a ver os efeitos dessa política monetária mais apertada sobre a demanda agregada e, com isso, ajudando a baixar a inflação. Os fatores do lado da oferta que antes tinham um papel importante, por causa das perturbações nas cadeias produtivas, em grande medida se dissiparam, e isso também contribui para reduzir a inflação. Dada a persistência da inflação, nós temos que assegurar que a política monetária continue crível e as expectativas para os índices de preços não desancorem. Esses são os motivos pelo qual a nossa mensagem para os bancos centrais é manter o curso e a política monetária apertada.

Valor: A sra. acredita que os juros vão ficar nos níveis atuais por um longo período? Há o risco de um novo equilíbrio de inflação mais alta, juros mais altos e crescimento mais baixo?

Gopinath: Enquanto os bancos centrais conseguirem ser bem sucedidos em reduzir a inflação, e nós não temos um cenário em que as expectativas se desancoram, a nossa expectativa é que os juros reais voltarão a ficar ao redor de onde estavam antes da pandemia – embora seja algo obviamente sujeito a incertezas. O nosso cenário base, porém, de fato envolve crescimento mais baixo no médio prazo. Se você olhar para as nossas estimativa mais recentes para o crescimento de médio prazo da economia global, ele é de 3%. Se você fizesse a mesma pergunta em 2011, era 4,6%. Nós estamos projetando uma desaceleração do crescimento de médio prazo. O crescimento da China de médio prazo, por exemplo, deve desacelerar. O tamanho da economia chinesa já aumentou substancialmente, então não é surpreendente que a sua taxa de expansão esteja desacelerando. Além disso, a China tem os mesmos problemas que vários outros países do mundo enfrentam, como o envelhecimento da população e o crescimento fraco da produtividade, dois fatores que vão levar a um crescimento menor. Então nós de fato esperamos que o crescimento seja mais baixo, mas isso não significa que a inflação será mais alta. O nosso cenário base é que a inflação recuará para as metas dos bancos centrais em 2024 ou 2025, a depender do país.

Valor: Na conferência do BC, a sra. disse que há poucos precedentes históricos, se é que há algum, de a inflação cair de níveis muito altos sem uma desaceleração econômica significativa. Isso significa que temos de esperar uma desaceleração mais forte da atividade tanto em países desenvolvidos como nos emergentes como o Brasil?

Gopinath: Este tem sido um período muito único. Nós nunca tivemos esse tipo de pandemia que vimos recentemente, em 2020. E, claro, há também a guerra na Ucrânia. Com isso, há desafios únicos desta vez. Esse é o motivo pelo qual mantemos aberta a possibilidade de que pode haver uma correção suficiente da inflação sem uma desaceleração significativa, mas seria muito atípico historicamente. As possibilidades estão para o lado negativo. Nós podemos ter uma piora da atividade maior. E também é possível que os juros tenham subir mais para reduzir a inflação, o que obviamente levaria a uma desaceleração mais significativa do crescimento ou mesmo a uma contração.

Valor: Nesse cenário, para a inflação voltar aos níveis pré-pandemia, teremos que assistir uma desaceleração econômica mais forte?

Gopinath: O nosso cenário base é que há um caminho estreito para a inflação cair para os níveis anteriores à pandemia sem uma recessão profunda em muitos países, incluindo os EUA. Há um caminho estreito para evitar uma recessão neste ano. Mas, dito isso, há bastante incerteza em torno da nossa projeção e as possibilidades são mais para o lado negativo do que para o lado positivo.

Valor: A sra. alertou várias vezes sobre os riscos de fragmentação geoeconômica desde o ano passado. Quão graves são esses riscos hoje, mais de um ano depois do começo da guerra e mais de três anos após o começo da pandemia da covid-19?

Gopinath: Nós estamos muito preocupados com as consequências das tensões geopolíticas sobre a integração econômica. A pandemia causou preocupação sobre a resiliência das cadeias de oferta, mas, ainda mais importante, a invasão da Ucrânia pela Rússia fez os países ficarem ainda mais preocupados e m relação à segurança econômica e à segurança nacional. Há um bom motivo para os países quererem diversificar as fontes de onde conseguem os seus suprimentos. É importante, porém, que isso não leve ao protecionismo ou a um descolamento sério da economia global. Essa é uma preocupação. Nós fizemos uma análise mostrando quais seriam os custos de um descolamento severo, por exemplo, no comércio, e isso reduziria o PIB global em 7% de modo permanente, o equivalente a perder as economias da França e da Alemanha. Então esses são custos substanciais. Ainda não se vê a fragmentação nos dados do comércio, mas certamente se vê em termos de preocupações levantadas ao redor do mundo por empresas e a atenção dispensada aos riscos de fragmentação. E nós temos visto as barreiras comerciais em alta. Tudo isso pode enfraquecer a integração econômica.

Valor: Quão preocupados devemos ficar sobre a crise do teto da dívida nos EUA? Até alguns anos atrás seria inconcebível pensar num calote dos EUA. A sra. acha que isso é uma possibilidade real? Quais seriam as consequências de um default dos EUA?

Gopinath: É absolutamente crucial que isso seja resolvido o mais rápido possível, que todas as partes relevantes se reúnam e cheguem a uma solução que evite qualquer tipo de default dos EUA. Seria catastrófico se ocorresse, para os EUA e para o resto do mundo. Nós temos esperança e aguardamos que isso seja resolvido em breve.

Valor: Os mercados emergentes estão preparados para enfrentar uma nova era de juros mais altos nos países desenvolvidos?

Gopinath: Comparados a algumas décadas atrás, os mercados emergentes estão numa posição melhor para enfrentar esses choques. Eles têm arcabouços mais fortes de políticas. Vários adotaram o regime de metas de inflação. Eles têm independência do banco central e arcabouços fiscais mais saudáveis, e muito foi feito para fortalecer a estabilidade financeira. Tudo isso os ajudou a suportar os choques que enfrentaram. Mas isso não significa que eles estejam completamente isolados. E, como eu aconselharia todos os países, é muito importante permanecer muito vigilante, especialmente sobre estresses que podem afetar o sistema financeiro.

Valor: O governo brasileiro apresentou o novo arcabouço fiscal há algumas semanas. A sra. acha que a nova regra fiscal vai ajudar a estabilizar a relação entre a dívida e o PIB e reduzir as incertezas fiscais?

Gopinath: Em primeiro lugar, nós apoiamos fortemente o compromisso do governo em melhorar a posição fiscal do Brasil. Como dissemos no comunicado à imprensa [referência à nota divulgada na terça-feira, com a conclusão da visita da missão do FMI ao Brasil neste ano, que faz um raio X sobre a economia do país], nós vemos a possibilidade de mais ambição em termos de haver um período mais longo de consolidação fiscal que vá além de 2026, o que poderia colocar a dívida numa trajetória firme de queda. O arcabouço fiscal que o governo está propondo é muito útil para dar credibilidade à sustentabilidade da dívida, e também para ajudar no ambiente atual de inflação alta.

Valor: Mesmo se o arcabouço se concentra mais em elevar as receitas do que em controlar as despesas?

Gopinath: As autoridades ainda estão trabalhando em diferentes partes da legislação. Mas deixe-me ressaltar o que seria um ponto realmente significativo: a reforma da tributação indireta [uma referência à reforma que envolve impostos como IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS]. Se for aprovada, será uma conquista expressiva.

Valor: A reforma tributária pode ser um divisor de águas para o Brasil?

Gopinath: A reforma dos impostos indiretos seria uma um divisor de águas para o Brasil. Ela simplificaria o sistema tributário e tem a capacidade de aumentar o crescimento potencial. Então, pelos dois motivos, seria um resultado significativo.

Valor: Essa reforma pode também ajudar a elevar receitas e contribuir para o governo cumprir as metas fiscais?

Gopinath: A reforma dos tributos indiretos é em princípio desenhada para ser neutra do ponto de vista das receitas, mas pode ajudar a trazer receitas adicionais, por causa do impacto positivo esperado sobre o crescimento potencial do país.

Valor: O Brasil passa por um período de baixo crescimento desde 2014, enfrentando uma recessão severa em 2015 e 2016. O que o Brasil deve fazer para crescer a taxas mais altas de modo sustentável?

Gopinath: No caso do Brasil, um fator que pode ter um papel muito importante é a transição verde. O Brasil está realmente fazendo um trabalho impressionante na transição verde, colocando-se como um líder nessa área. E, dada a importância da energia limpa na matriz energética no Brasil, a sua vantagem comparativa em produzir energia solar e eólica, o país está numa posição boa como potencial de fornecer produtos verdes para o mundo, de se tornar um centro de produção manufatureira de bens verdes. Essa seria uma maneira de elevar o crescimento potencial. A segunda é melhorar habilidades e a qualidade da educação, o que sempre acreditamos ser essencial para aumentar o crescimento da produtividade. E eu sei que o governo também está muito focado em reduzir a pobreza e a desigualdade, que são passos muito importantes que eles estão tentando tomar.

Valor: Há um mês, a sra. tuitou que o banco central brasileiro apertou a política monetária apropriadamente para reduzir a inflação. Os juros brasileiros estão em níveis elevados, a economia está desacelerando e a inflação está perdendo fôlego, mas segue acima da meta e das expectativas para este ano e para os próximos. Em que medida o novo arcabouço fiscal pode ajudar a controlar as expectativas de inflação e abrir espaço para um ciclo de queda de juros?

Gopinath: Nós apoiamos fortemente o compromisso das autoridades a melhorar a posição fiscal do Brasil. Nós notamos que o plano de reduzir o déficit primário e ter um superávit primário de cerca de 1% do PIB em 2026, o que ajudaria a reduzir as pressões inflacionárias e também ajudaria na sustentabilidade da dívida. Isso seria um passo muito útil.

Valor: E essa trajetória para o resultado primário é realista?

Gopinath: É o que o governo propôs e eles têm tomado medias para serem consistentes com essa trajetória. Como nós dissemos no comunicado à imprensa, nós vemos espaço para uma ambição um pouco maior a esse respeito. Pode haver outras medidas de apoio, como ampliar a base tributária, para ajudar a elevar receitas, e nas despesas obrigatórias, o componente do gasto que tende a ser rígido no orçamento.

Valor: A Argentina enfrenta mais uma vez uma inflação muito alta e uma moeda em desvalorização acelerada. O que a Argentina pode fazer para enfrentar essa crise e como o FMI pode ajudar a Argentina?

00Gopinath: A Argentina atravessa um período desafiador. Há muita fragilidade na economia. A grave seca complicou a situação ainda mais. Nós estamos trabalhando muito de perto com as autoridades para restaurar a estabilidade macroeconômica. Dada as circunstâncias, são necessárias políticas mais fortes de sustentabilidade fiscal e também para aumentar o volume de reservas. Os dois fatores ajudarão a reduzir a inflação na Argentina. Nós trabalhamos muito de perto com parte da quinta revisão do programa [do FMI com o país vizinho]. Nós também ajustamos as metas para as reservas, reconhecendo o impacto da seca. Nós estamos em consultas próximas e nossas equipes técnicas estão trabalhando juntas.


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