A crise no abastecimento de energia, agravada pelo pior regime de chuvas em 91 anos nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, terá desdobramentos sobre a logística nacional: a Hidrovia Tietê-Paraná, um dos principais corredores fluviais do país, pode ser paralisada no início do segundo semestre.
Em carta enviada ao Ministério de Minas e Energia, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) pede mudanças emergenciais na operação dos reservatórios de duas hidrelétricas no rio Paraná que, na prática, comprometem ou até inviabilizam a navegabilidade na hidrovia.
No ofício, obtido pelo Valor e com data de 21 de maio, o ONS relata a necessidade de reduzir a cota inferior (altura mínima dos espelhos d’água) dos reservatórios de Ilha Solteira (SP) e de Três Irmãos (SP) abaixo do nível de 325,4 metros definido pela Agência Nacional de Águas (ANA).
Para a entidade responsável pela operação do sistema elétrico, isso precisa ocorrer a partir do início de julho. A medida é descrita como essencial para manter a “governabilidade hidráulica na bacia do rio Paraná ao longo do período seco de 2021”. Reservatórios como Água Vermelha e Marimbondo, localizadas a montante (acima) dessas usinas, já estão com menos de 10% do volume útil e terão que enfrentar vários meses de estiagem.
O pedido contempla ainda uma queda das vazões mínimas dos reservatórios de Jupiá (SP) e Porto Primavera (SP), respectivamente para 2.300 metros cúbicos por segundo e 2.700 m3 /s, também a partir do mês de julho.
O efeito colateral da medida, que deverá ser analisada pela ANA, é o comprometimento logístico. “Cumpre destacar que a operação dos reservatórios das UHEs Ilha Solteira e Três Irmãos abaixo da cota 325,40m implica em restrições à navegação na Hidrovia Tietê-Paraná”, diz o diretor-geral do ONS, Luiz Carlos Ciocchi, no ofício ao ministério.
No governo de São Paulo e entre usuários da hidrovia, a dúvida não é se, mas quando as operações serão afetadas ou interrompidas. “Se houver mudança de vazão a partir de julho, a hidrovia vai parar. Não tem calado, não tem jeito”, disse ao Valor o secretário de Logística e Transportes do Estado de São Paulo, João Octaviano Machado Neto.
No primeiro trimestre, segundo dados da secretaria, houve alta de 90% das cargas movimentadas pela hidrovia na comparação com igual período do ano passado. Os principais produtos transportados foram soja, milho e cana. O número de embarcações passando por dia no corredor logístico, em média, aumentou de 12 para 23. Cada comboio retira até 200 caminhões das rodovias.
O governo de São Paulo diz entender a crise vivida pelo setor elétrico e a necessidade de medidas emergenciais, ressalta Octaviano, mas pede previsibilidade e transparência. “Claro que a gente não se opõe, mas isso tem impactos. A Hidrovia Tietê-Paraná está se consolidando cada vez mais como um corredor logístico importante.”
Em linhas gerais, trata-se praticamente de uma repetição do quadro verificado em 2014 e em 2015, quando a hidrovia passou quase dois anos sem operar. Dados do ONS apontam que aquele biênio registrou o terceiro pior regime de chuvas da história na bacia do rio Paraná. A situação de 2021 é a segunda pior – só perde para 2001, ano do racionamento de energia.
Segundo o diretor-executivo do Movimento Pró-Logística, Edeon Vaz, a hidrovia transporta cerca de seis milhões de toneladas por ano. Além de produtos do agronegócio, ela é essencial no escoamento de materiais para a construção civil, como areia. Os grãos percorrem majoritariamente o trajeto entre São Simão (GO) a Pederneiras (SP).
Vaz afirma que os produtores buscarão, em conversas com a ANA, estender a operação da hidrovia para concluir os embarques da safra. “Tentaremos empurrar isso [o funcionamento do corredor] até setembro”, afirma o diretor do Movimento Pró-Logístico, que é composto por diversas entidades do setor produtivo e presidido pela Aprosoja. “É uma concorrência pelo uso da água. Nós precisamos de calado para a navegação. Eles precisam de geração de energia.”
Segundo ele, a inauguração do novo trecho da Ferrovia Norte-Sul ajuda a mitigar o impacto de um fechamento da hidrovia, mas o ideal é que haja aviso prévio da ANA sobre cada passo a ser tomado. Assim, os usuários poderão se programar e acertar novos contratos de frete com as operadoras de ferrovias, por exemplo. “Não adianta avisar em cima da hora.
Na semana passada, a agência reguladora fez reunião virtual com agentes interessados na bacia do Paraná. O Ministério de Minas e Energia advertiu que, para poupar água dos reservatórios, ações terão efeitos colaterais. “O nível de criticidade é tal que medidas adicionais precisam ser adotadas, que envolvem não só o setor elétrico, mas com repercussões em outros setores”, observou o secretário de Energia Elétrica, Christiano Vieira.
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