Para Daniel Schmand, chefe global de finanças comerciais do Deutsche Bank, as indústrias dos países emergentes terão de diversificar suas cadeias de fornecedores
A crise gerada pela pandemia da covid-19 expôs várias vulnerabilidades dos modelos de negócios usados hoje. Na opinião de Daniel Schmand, chefe global de finanças comerciais do Deutsche Bank, a principal lição aprendida foi como o modelo “just-in-time” faz com que as cadeias de suprimentos interconectadas sejam um grande ponto fraco para o funcionamento das indústrias.
Schmand espera ver mudanças nas cadeias de suprimentos globais, mas não apenas na sua distribuição geográfica: a identificação desta vulnerabilidade deve mudar também a maneira como a indústria funciona. Para os países emergentes, a lição pode fazer com que algumas indústrias busquem diversificar fornecedores, ou comecem a olhar mais para alternativas como a reciclagem de metais.
O economista acredita que não veremos mais grandes ações por parte do Banco Central Europeu (BCE) no curto prazo, mas que uma recuperação econômica lenta pode gerar a necessidade de mais estímulos, caso as indústrias comecem a sofrer com a falta de encomendas.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: O senhor espera que a crise gere alguma mudança fundamental na maneira como o comércio internacional é conduzido?
Daniel Schmand: Eu espero ver uma mudança enorme nas cadeias globais de suprimentos. Acredito que veremos uma preferência maior por fornecedores geograficamente mais próximos. Nas indústrias mais críticas, eu acredito que veremos um aumento dos estoques, em oposição ao modelo just-in-time usado agora.
Valor: Voltaremos a economias puramente nacionais?
Schmand: Não. Mas as cadeias de suprimento provavelmente passarão por uma profunda revisão, seja para matérias-primas, seja para peças de reposição. E há uma clara tendência para maiores estoques e nearshoring.
Valor: Em relação aos mercados emergentes, o senhor espera que isso seja prejudicial para os exportadores de commodities?
Schmand: Eu não diria que isso prejudicaria, mas eu acredito que as indústrias manterão estoques maiores. Especialmente se estivermos falando de metais raros e críticos para o funcionamento da indústria. Não estou falando, portanto, de petróleo, mas de metais como o paládio. Estes são componentes críticos, não é possível trabalhar sem estoques deles e eles vêm de lugares específicos. Mas é claro que haverá especificidades. Não temos petróleo na Alemanha, por exemplo, então pode ser que tenhamos de manter níveis mais elevados de estoques.
Valor: Que tipo de efeito o senhor espera que isso terá sobre metais industriais, como aço ou cobre?
Schmand: Esta é uma ótima pergunta. Se você olhar as grandes mineradoras, como a Vale, eu acredito que algumas indústrias vão procurar fontes alternativas. Algumas estarão olhando mais para a reciclagem, principalmente em se tratando do cobre. Você vai querer ser o mais independente possível de interrupções, principalmente quando você fala de cadeias de suprimentos de longa distância.
Valor: O senhor espera que o comércio lidere a recuperação econômica global ou apenas siga?
Schmand: O comércio tem que liderar, ou isso não é uma recuperação real. Os fluxos comerciais globais precisam subir, ou não teremos uma recuperação sustentável.
Valor: E quando espera que o comércio volte aos níveis pré-crise?
Schmand: Esta é a questão mágica. Seria necessário ter uma bola de cristal, mas, se tivermos muita sorte, primeiro trimestre do ano que vem. Mais realisticamente, primeiro trimestre de 2021.
Valor: Presumindo que o comércio lidere a recuperação econômica, isso significaria um retorno da economia apenas em 2021 ou 2022?
Schmand: Correto. A economia deve se recuperar, mas pode significar coisas completamente diferentes para cada indústria. Quem pode trabalhar de casa e os negócios envolvendo aparelhos de TI terão o crescimento mais rápido. Eu não sei como está sendo no Brasil, mas aqui não tivemos nenhum problema em trabalhar de casa. Essa coisa de prédios comerciais, se deslocar todo dia para o trabalho… Podemos ver um modelo completamente novo. Onde eu vejo mudanças drásticas é a educação, que é baseada totalmente em informação. Eu acho que veremos mudanças tectônicas em relação à maneira como costumávamos viver.
Valor: Quais são as suas projeções para a economia? O senhor ainda acredita em uma recuperação em V da economia europeia?
Schmand: A recuperação em V está em dúvida. Algumas pessoas acreditam em uma recuperação em W, e há alguma lógica nisso. Eu estou no campo da recuperação em “Nike”, para a Europa, mas não sou especialista em mercados americanos. Como banco, temos a vantagem de estarmos na Alemanha, que tem uma economia saudável, o sistema mais robusto do bloco e também tem as ferramentas para dar suporte à economia. O país teve algumas falhas, mas a resposta do governo e dos bancos à covid-19 foi muito rápida. Em duas semanas tínhamos funcionando um programa para dar suporte a empresas de todos os tamanhos, incluindo pequenas empresas familiares. E o programa não só estava pronto como já estava funcionando, o que exigiu alguma habilidade de engenharia para fazer acontecer. Por isso, do ponto de vista da Europa eu estou mais preocupado com economias como a da Itália e a da Espanha, que já sofreram momentos de maior fraqueza e foram atingidas mais duramente pela covid-19.
Valor: Saindo um pouco da Europa, qual a sua projeção para os mercados emergentes?
Schmand: Eu acho que as pessoas às vezes esquecem que alguns países foram atingidos triplamente. Se você é um país emergente dependente da exportação de commodities e então é atingido pela covid-19, você foi vítima disso. Você já não tem uma posição muito sólida, sofre os efeitos indiretos da pandemia nos preços de petróleo, por exemplo, e então é atingido pela pandemia em si, essa é a minha principal preocupação. Então a minha precisão é que aqueles que já enfrentavam grandes desafios antes terão de enfrentar desafios ainda maiores, enquanto aqueles que estavam em uma boa posição vão se sair melhor, terão um ganho relativo. A diferença entre as economias desenvolvidas e as emergentes pode ficar maior.
Valor: O senhor tocou no ponto dos estímulos fiscais, que a Europa implementou mais rapidamente do que Estados Unidos. Mas, fora a diferença de velocidade, quais foram as diferenças entre as respostas?
Schmand: Eu acho que a Alemanha já tinha uma infraestrutura funcional, o que agilizou a implementação. O país usou bancos estatais, como o KFW, que funcionam bem e já fizeram parte de programas no passado para dar suporte à economia. Tivemos que ampliar a escala e alterar as regras, mas, se não tivéssemos esta estrutura pré-existente, teríamos dificuldades. Poderíamos até anunciar um grande programa, mas não teríamos como implementá-lo. Eu acho que a grande vantagem que a Alemanha teve é que o que quer que fosse anunciado estaria imediatamente disponível para a economia. Não houve este problema de o programa ser anunciado para depois as pessoas terem que descobrir de onde tirar o dinheiro, quais documentos preencher e quanto tempo esperar. Dois ou três dias depois do anúncio, os pacotes de estímulo e o crédito já havia sido pago para as pequenas empresas.
Valor: O senhor acha que a resposta do BCE já foi suficiente ou você espera mais ações no futuro?
Schmand: Isso depende de vermos um cenário de recuperação em V ou em W. Hoje, a maior parte das grandes companhias europeias se saíram bem porque elas estavam com muitas encomendas em curso. Então mesmo com uma forte desaceleração das encomendas, como aconteceu nos últimos três meses, veremos os efeitos apenas em outubro ou novembro. Pode haver a necessidade de mais medidas quando as encomendas forem entregues e a produção recuar. Essa é a grande questão. Já tivemos esforços imediatos para fornecer liquidez e agora estamos vendo os efeitos dos estímulos fiscais. Mas a minha expectativa é que eles farão tudo o que for necessário.
Valor: A presidente do BCE, Christine Lagarde, sinalizou isso.
Schmand: Exatamente. Não é uma questão realmente de opção. Os estímulos são como se fosse uma grande festa, e temos que garantir agora que não vamos acordar todos de ressaca. O que eu quero dizer com isso é que temos que começar agora a pensar em como pagar por tudo o que foi disponibilizado à economia. Acho que isso faz parte do nosso DNA alemão, mas já estamos pensando em como vamos lidar com a economia após a covid-19, quando as coisas voltarem ao normal.
Valor: A austeridade alemã foi criticada no passado, mas você diria que ela está pagando dividendos agora, com a Alemanha podendo reagir rapidamente?
Schmand: Isso está absolutamente correto. Não houve debates na Alemanha: tínhamos os meios e sabíamos o que fazer na crise. A situação na Alemanha e na França é bem parecida, enquanto os programas da Itália e da Espanha são um pouco diferentes. Mas, aconteça o que acontecer, conseguimos ajudar a economia da zona do euro. Fizemos tudo o que era necessário para fornecer estímulo. Eu acho que o que precisamos agora é um pouco de estabilidade geopolítica. A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China pode não ser a coisa mais inteligente de se fazer no meio de uma crise como esta.
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