Felizmente, o meu amigo era autêntico e a sua sinceridade, às vezes, melindrava espíritos mais suscetíveis. Para mim, contudo, a franqueza agreste era simplesmente uma das suas muitas qualidades. Porque, se o meu amigo tinha alma de guerreiro, o coração, seguramente, era o de um Gandhi.
Meu amigo foi um advogado brilhante e ilibado. As décadas vividas nos fóruns serviram para aprimorar o seu talento e a modular a inflexão, transformando a voz num eloqüente instrumento de retórica, que ele utilizava com invulgar maestria para combater as muitas incoerências e aberrações que ainda grassam em nosso sistema jurídico, principalmente na seara trabalhista. Eu costumava dizer que ele falava em letras de forma. Até os palavrões, que elencava em profusões inimagináveis, especialmente quando o status quo insistia em tentar tolher o seu “jus sperneandi”. Entretanto, a experiência adquirida com as vicissitudes não foi capaz de subtrair-lhe o viço do idealismo e a paixão pelo direito.
Meu amigo e a sua também saudosa esposa Judith batizaram a minha filha caçula, sacramentando uma longa e harmoniosa convivência familiar, que extrapolou, em muito, os restritos âmbitos profissionais, através dos quais nos conhecemos.
Enfrentamos muitas batalhas judiciais juntos. Vencemos muitas; perdemos outras. Lembro-me perfeitamente de uma audiência no interior de São Paulo, acontecida há muitos anos, que envolvia uma colisão sem vítima com um caminhão da empresa. Para nosso azar, o litigante, apesar de ser o único e real culpado pelo acidente que causou avarias de enormes proporções em seu automóvel de luxo, tinha muita influência na região. Em frente ao local da ocorrência, existia um ponto de ônibus e as inúmeras testemunhas do oponente que foram ouvidas depuseram, com frases decoradas e praticamente idênticas, que estavam lá, que presenciaram a trombada e que o veículo estava parado e o caminhão o abalroou. Uns estavam aguardando o ônibus; outros, passando em frente ao ponto de ônibus; outros mais, fazendo alguma coisa qualquer no ponto de ônibus, ou ao lado. Em dado momento, farto de tantas mentiras, o meu amigo me confidenciou, em voz baixa, mas não tanto que não pudesse ser ouvida pelos demais: “Não adianta, Rubão! Metade de São José dos Campos estava no ponto de ônibus naquela noite. Só falta, agora, aparecer alguém dizendo que viu a batida porque estava sendo sodomizado no ponto de ônibus”. Bem, “sodomizado” não foi o termo que ele usou, mas serve para passar uma idéia do palavrão empregado. O advogado da parte contrária teve que se conter para não cair na gargalhada; o meritíssimo fez que não ouviu, mas virou o rosto para poder rir.
Assim era o Dr. Júlio Nicolucci Jr. O meu amigo Júlio.
Choramos muito as nossas perdas juntos. Lamentamos e rimos muito juntos. Bebemos muito juntos. Mas não o suficiente. A distância, meus traumas familiares e os crescentes e inadiáveis compromissos afastaram-nos. Hoje, me arrependo por não ter passado mais tempo com ele, jogando conversa fora, falando mal de quem bem merece, degustando um conhaque de boa linhagem e ouvindo piadas muito bem contadas.
| Que sirva de lição: se um amigo convidar você para tomar uma cerveja, não recuse. Nunca!
Inconscientemente, ele pode estar querendo se despedir…
Vá em paz, Júlio!
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