Distribuidoras temem que queda na fiscalização da ANP aumente irregularidades no setor
As distribuidoras de combustíveis estão preocupadas com os efeitos da pandemia da covid-19 sobre os problemas de fraude no mercado brasileiro, diante da queda da fiscalização. Monitoramento de mercado do Instituto Combustível Legal (ICL) mostra indícios de crescimento nos casos de adulteração, sonegação, dentre outras fraudes, nos últimos seis meses. No setor elétrico, a preocupação se volta para os furtos de energia (os “gatos”). O ICL foi criado recentemente com o objetivo de combater ilegalidades no setor e conta com o apoio da BR, Ipiranga e Raízen.
O ICL estima que, nos mercados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, que concentram 40% do consumo nacional de combustíveis, o número de postos que trabalham na irregularidade subiu, na média, de 15% para cerca de 20% após a eclosão da pandemia. O cálculo inclui não só adulterações na qualidade e vícios de quantidade dos produtos, mas também irregularidades fiscais. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), ao menos R$ 7,2 bilhões deixaram de ser arrecadados pela União e pelos Estados em 2018 por sonegação e inadimplência, sobretudo na distribuição de etanol.
As estimativas do Instituto Combustível Legal tomam como base um trabalho de monitoramento da qualidade e quantidade promovido pela equipe técnica da entidade. Veículos adaptados rodam regularmente São Paulo, Rio e Paraná (e, eventualmente, outros Estados) para recolher amostras de produtos para análise em laboratório. São monitorados, em média, 210 postos/mês. O ICL presta apoio de inteligência para forças-tarefas de órgãos de fiscalização, por meio de convênios que visam a compartilhar informações.
Segundo o diretor-geral do instituto, Carlo Faccio, o monitoramento sugere que há um recrudescimento tanto na qualidade quanto na quantidade dos produtos. A tendência de alta das fraudes acompanha a perda da capacidade de fiscalização das autoridades públicas, frente não só às restrições de circulação impostas pela pandemia quanto ao contingenciamento de verbas. As ações de fiscalização da Agência Nacional de Petróleo (ANP), por exemplo, caíram 17% no primeiro semestre, ante igual período do ano passado.
“Isso tudo abre uma grande janela de oportunidade para oportunistas, para empresas e empresários que utilizam a pandemia como forma de perpetuar a irregularidade”, afirma Faccio.
Os dados da ANP, por sua vez, mostram que o índice de conformidade dos combustíveis tem se mantido relativamente estável durante a pandemia. A agência destaca que o índice (de 98,4% em agosto) sugere que “não há deterioração da qualidade dos produtos” no Brasil. O órgão alega que manteve a fiscalização mesmo com a pandemia, mas que as ações foram impactadas por restrições na movimentação de servidores, em respeito aos protocolos sanitários, e pelos efeitos da queda na atividade econômica sobre as vendas e sobre as próprias denúncias de irregularidades recebidas pela Ouvidoria. Sobre o orçamento da Superintendência de Fiscalização, a ANP destaca que os empenhos relativos às despesas discricionárias da área cresceram de R$ 12,1 milhões em 2019 e para uma previsão de R$ 12,7 milhões em 2020.
Faccio explica, por sua vez, que os fraudadores possuem, hoje, técnicas sofisticadas que permitem a desmobilização de irregularidades no momento da chegada de fiscais identificados. Ele destaca ainda que as irregularidades incluem a presença de postos piratas e roubo de cargas. Segundo ele, há indícios de que as ilegalidades são cometidas por grupos, alguns deles, associados ao crime organizado – que tradicionalmente operava com venda de armas e drogas, mas que encontrou no setor de combustíveis um novo nicho. “É um ambiente propício para lavagem de dinheiro, porque trabalham com pagamento em espécie e não há rastreabilidade no combustível [roubado]. É um produto difícil de monitorar”, explica.
Ele chama a atenção para a tendência de casos de fraudes fiscais no uso de etanol para outros fins (como para a produção de álcool em gel). Segundo Faccio, empresas estão destinando aos postos volumes de etanol que foram declarados originalmente para outros fins, para obtenção de diferenciação tributária. Além disso, há relatos crescentes de adição de metanol à gasolina e fraudes na mistura do biodiesel ao diesel, em volumes abaixo da mistura obrigatória.
Um executivo de uma distribuidora contou ao Valor, sob a condição de anonimato, que a crise tem aumentado também o tamanho da dívida ativa da União e Estados com os chamados devedores contumazes no setor. Segundo a fonte, essas empresas, que nunca pagam tributos, têm recorrido à crise para justificar o não recolhimento de impostos em 2020. Só a dívida ativa dessas empresas com os Estados do Rio, São Paulo e da União já cresceu R$ 1,5 bilhão neste ano.
O ICL foi criado este ano, como herança do Movimento Combustível Legal, formado em 2017 pelo Sindicato Nacional das Distribuidoras de Combustíveis (Sindicom) e outras 15 entidades em defesa do combate à sonegação no setor. A iniciativa se transformou num instituto, que agora abraça também a causa das fraudes comerciais. Além das distribuidoras, o ICL conta com o apoio da Firjan e Fiesp e das montadoras de veículos (Anfavea), dentre outras instituições, e defende, como forma de combate à evasão fiscal, a simplificação tributária, por meio da cobrança monofásica sobre o produtor de etanol (hoje a arrecadação é concentrada na distribuição).
A preocupação com fraudes ocorre também no setor elétrico. Ainda não há dados claros sobre as tendências das irregularidades na área nos últimos meses. Os balanços de algumas empresas já contabilizam, porém, os efeitos da pandemia sobre as perdas não técnicas (associadas, em geral, a furtos e erros de medição, por exemplo).
As perdas não técnicas (medidas pela média acumulada de 12 meses) do grupo Energisa cresceram 4,4% em gigawatts-hora no segundo trimestre, em relação ao primeiro, com destaque para o aumento nas concessionárias de Tocantins (30%), Sergipe (13%), Paraíba (11%) e Mato Grosso (5%). Já a Light, no Rio de Janeiro, registrou uma nova melhora dos índices no segundo trimestre, mas não nas áreas de risco, onde houve um aumento de 1,5% das perdas não técnicas.
O setor convive com um aumento da inadimplência – indicador que costuma anteceder a alta das fraudes. Segundo o Ministério de Minas e Energia, a inadimplência chegou a 9,8% em abril e manteve-se acima da média de 2019 (1,9%) durante todo o primeiro semestre – o índice, no entanto, vem caindo nos últimos meses. O diretor-executivo da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Ricardo Brandão, afirma que ainda não está claro se o fim dos auxílios e a esperada recuperação econômica serão suficientes para reduzir a inadimplência.
A Energisa esclareceu que, diante da pandemia, houve uma redução das ações de combate às perdas e a suspensão dos cortes do fornecimento por inadimplência, mas que “ainda não é possível determinar o perfil de clientes que cometeram furto” no período. A empresa também destaca que oito das suas onze distribuidoras fecharam 2019 com o nível de perdas abaixo da meta regulatória e que o grupo, para ajudar os clientes durante a pandemia, tem feito negociações para facilitar o pagamento de débitos. Com a flexibilização das medidas de isolamento, a empresa diz, ainda, que está retomando com maior intensidade as medidas de combate às perdas não-técnicas e que investiu R$ 330 milhões entre 2015 e 2019 na área.
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